sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

Joãozinho Traça

Luiz Guerra


Não chega a ser o fim, mas é um péssimo sinal.

O nosso Joãozinho Traça, livreiro de rua que os visitantes do meu galhodearruda.com já conhecem desde começos de 2005, não tem mais como abrir todos os dias o seu negócio abençoado. Agora, além do merecido descanso domingueiro junto à família, ele fecha também duas ou três vezes na semana para poder desincumbir-se de pequenas tarefas em residências de Marechal Hermes, embolsando com isso uma grana bem maior do que a féria obtida com os seus tabuleiros de revistas e brochuras. Afinal, o cara tem mulher, filhos, cães e gatos, paga aluguel e autonomia, e mora longe (em Japeri, vejam vocês). Se, como acontece com uma freqüência desalentadora, não vende nem o que dê para comprar uma quentinha executiva (sete ou oito merréis, por aí), como recusar-se a cuidar do jardim da D. Ofélia, carregar montes de tijolos para a escola pública ou fazer faxina nos sobradões do pedaço? Dá uma tristeza danada ver o nosso amigo azafamando-se pelo bairro, quando sabemos que ele não tem perfil para trabalhos dessa natureza. De certo ponto de vista, como gosta de brincar Dostoiévski, é um homem de letras, um abnegado rapagão metido há vinte e três anos no comércio informal de livros.

Merecia sorte melhor esse livreiro suburbano de rua, resistência pura num país em que se lê tão pouco (menos de dois livros por ano cada cidadão brasileiro; é de amargar). Não sei como ainda não largou tudo e torrou os seus volumes nos grandes sebos do centro da cidade, a exemplo daqueles que sucumbiram antes dele. (Aqui e em tantos outros pontos do subúrbio, onde ninguém se arrisca a tocar uma livraria que se preze, ou a brigar por bibliotecas públicas modernas, com programas criativos de incentivo à leitura. O que temos vagamente parecido com uma biblioteca pública amontoa-se numa saleta de fundos do Teatro Armando Gonzaga, e dou um doce para quem me apontar um morador deste lado do bairro que a conheça. Não vale o cronista, claro.)

Na boa época das vacas gordinhas (no meu caso específico, gordas seria um despautério), bem que eu teria bancado o valor dos seus bicos só para ele não abandonar o posto. Disse-me um dia que consegue tirar entre dez e quinze reais por biscate. Caí das nuvens. Se isso é melhor do que ele arranja com a venda dos livros, então a coisa vai muito mal por aqui, ninguém está lendo nada.

Mas Joãozinho Traça é um sujeito e tanto, sempre bem-humorado. Hoje mesmo, enquanto eu passava em revista duas pilhas de livros recém-chegados, vindos auspiciosamente da casa de uma professora de história (temos aqui um Rocha Pombo, Antonil, Macário, Euzébio M. Coelho), ele chegou-se a mim com um volume novinho em folha, da L&PM POCKET.

"Este aqui é a sua cara", disse, com um ar timidamente zombeteiro. "Tenho certeza que o senhor vai gostar."

Voei na mão dele. Era o Notas de um velho safado, de Charles Bukowski, num precinho bem camarada. Mas minha cara, por quê? Cada uma!...

 
Luiz Guerra, é poeta, cronista e tradutor carioca



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